quinta-feira, 31 de março de 2011

O Espantalho

Hoje eu me encontrei com o espantalho. Faz dias que eu o ignoro, quando passo por ele desvio o olhar e finjo que não vi. Hoje porém, ele foi mais rápido. Quando pensei em virar o rosto e ignorar, ele já me fitava, mudo, esperando que eu admitisse o meu ato falho.

Hoje, depois de tanto tempo, o espantalho e eu acertamos as contas pendentes entre nós.

Levei alguns segundos para me recompor do susto daquele encontro.

O espantalho que hoje me fitava, não era o mesmo que habitava minha memória.

Sobre seus ombros cansados caiam cabelos pesados e sem vida, sua pele pálida se confundia com o branco fantasmagórico daquela aparição. Seu rosto estava desfigurado, os retalhos que sobraram escondiam a melancolia que se alojou próximo aos olhos, e os vincos de tristeza que marcaram a pele de maneira irreversível.

Um tom cinza tristeza ocupava o lugar do azul anil que um dia coloriu aqueles olhos. Fazia muito tempo que a cor daqueles olhos havia mudado. E entre os lábios, surgia um sorriso-coringa, sem expressão, sem nome, sem vida. Aquele sorriso apagado me atingiu tal qual flecha e se alojou naquele lugar aonde costumava bater meu coração. Agora, impossível arrancar o sorriso doente de lá sem arrancar pedaços de coração junto.

Hoje o espantalho nada falou. Nunca precisou fazer isso pra causar danos em mim. Seus olhos, sombreados pelo escuro daquelas pestanas que pareciam querer dormir para sempre me acusavam.

O espantalho sabia quais das minhas dores mais machucam. Seus olhos me acusavam das vezes em que fui leviana com o coração dos outros, das vezes em que fui cruel com o meu próprio. O espantalho aparecia para me acusar dos maus tratos que me infringi. Seus olhos, seu sorriso me perguntavam incessantemente para aonde eu havia enviado meus sonhos. O que eu fiz com a criatura feliz que habitava meu corpo? Para debaixo de que tapete eu varri os meus desejos, aqueles loucos, impossíveis, tão meus e tão reais.

A minha voz trancou, as palavras vieram até minha boca e eu as engoli, se perderam em algum lugar no meu peito, ou na minha alma.

O espantalho me acordou pras vezes em que silenciei quando devia falar e quando falei na hora certa de calar.

O espantalho ria. A minha dor aumentava.

Petrificada diante daquela criatura que invadiu meu intimo pra me cobrar tudo o que eu não fiz de mim, consegui levar as mãos aos ouvidos na tentativa de não escutar aquela gargalhada que me rasgou por dentro.

Inútil, a alma guardou o que a mente vai esquecer. Por quantos anos ouvirei soar aquela gargalhada desesperada? Ansiando por vida, por pulso, por sangue?

Silêncio....

Um carro buzina impaciente, o som da rua me traz de volta a realidade. Meu quarto escuro começa a se encher com os sons vindos da rua, na cidade que começa a acordar. A vida pulsa lá fora.

Prendo meus cabelos, recoloco meu pijama. Hoje não é um bom dia pra sair daqui.

Quando a noite voltar eu tirarei meu espelho do quarto e quebrarei em mil pedaços.

Me reencontrar com meu reflexo, em forma de espantalho, nunca mais.

Gabriela Gehlen

Nenhum comentário:

Postar um comentário